quinta-feira

FALTA DE MÉDICO: Escassez ?



Autor: Ailton de Lima Ribeiro, consultor em gestão. Graduado em administração e especialista em gestão em saúde.

Nunca se falou tanto em “Falta de Médico” como atualmente. No entanto, é preciso situar bem esse termo, para que não reste dúvida sobre o emprego do vocábulo “falta” no caso em questão.

A fim de municiar a análise, por parte do cidadão, maior interessado, bem como aos gestores de saúde, interessados legais, apresentamos algumas informações pertinentes que podem ajudar a encontrar a melhor aplicação do termo.

No Brasil tem 371.788 médicos, uma proporção de 1,95 médicos para cada 1.000 habitantes, segundo dados obtidos da Pesquisa Demografia Médica no Brasil, CFM/AMB/CNRM, 2011).

Ainda segundo o estudo “a conclusão é que não faltam médicos de forma generalizada no Brasil, porém a concentração é desigual, determinada pelo mercado, pela concentração de renda, pelas disparidades regionais e pela distribuição das especialidades médicas”.

Na comparação com dados internacionais, vários “Brasis” podem ser observados, utilizando parâmetros possíveis para a taxa médico/ habitante no Brasil, considerando as desigualdades regionais e público-privada do país.
Se considerarmos apenas as capitais brasileiras, 20 delas têm mais de 1,95 médicos por 1.000 habitantes. Dez capitais têm razão médico habitante maior que 5. Quando se olha os estados como um todo, cinco deles têm razão maior de 1,95. Portanto, na maioria das capitais e em cinco dos estados, já há mais médicos do que a média nacional. Em contrapartida, 22 unidades da federação têm menos que a média brasileira, que é de 1,95 médicos por 1.000 habitantes, equiparando-se a níveis de países asiáticos e africanos.
A posição do Brasil sobe para a taxa de 3,33 quando se olha o número de médicos ocupados. Por esse critério do estudo Demografia Médica no Brasil, os médicos foram contados por seus vínculos de trabalho em estabelecimento de saúde, segundo o IBGE.
Fonte: Demografia Médica no Brasil / São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo: Conselho Federal de Medicina, 2011.

Alerta o referido estudo que a desigualdade no Brasil começa, em primeiro lugar pela distribuição geográfica, ou seja, há uma grande concentração de profissionais nas capitais e nas cidades onde têm curso de medicina, com grande ênfase para os Estados do sul, sudeste e centro-oeste. Os demais Estados, com exceção das capitais, sofrem pela desproporção médico/habitante.

Vale lembrar que a proporção de 1,95 médicos/habitante refere-se a postos públicos e privados, com larga vantagem para o setor privado por contar com 3,9 vezes mais postos de trabalho médico disponíveis que os usuários da rede pública.

“O número de postos ocupados por médicos no Brasil somam 636.017, dos quais, 55,22% trabalham em jornada de 20 horas; 22,4%, em turno de 40 horas; e 22,4% sem jornada informada”. Destes, 281.481 são postos de trabalho em unidades públicas ou privadas de atendimento à rede SUS.


Quadro I – Cálculo do número de consultas disponíveis por ano


Número de horas em assistência (3)


3.353.288

Distribuição


Semanal

281.481 postos públicos de trabalho, distribuídos em jornadas de 20 e 40 h (1).

Especialistas        55%


1.844.308

que possui título oficial das especialidades reconhecidas.

Generalistas        45%


1.508.979

que não possui título formal de especialista.
Cálculo da capacidade de atendimento (2)
Semanal
Mensal
Anual
Especialistas

           3.688.616

     14.754.466

                                              177.053.590

Generalistas

           6.035.918

     24.143.671

                                             289.724.057


Este é o número de consultas possíveis durante um ano →→→

                                             466.777.647

Parâmetros:
1- Número de postos de trabalho, distribuição das jornadas e especialidades: Demografia Médica no Brasil/Cremesp, 2011.
2- Considerado para especialista 2 consultas por hora e generalista 4 consultas por hora (base empírica).
3- Descontado do cálculo: 20% em atividades não assistenciais e 8% por faltas legais (base empírica).

O quadro acima demonstra que, a partir de certa quantidade de “hora de disponibilidade médica”, calculada com base nas jornadas de registro e pelo número postos de trabalho públicos, é possível obter o número potencial de consultas. Representa a capacidade instalada no conjunto de postos de trabalho instalados no país. É evidente que sabemos das imprecisões contidas nesse cálculo, muitas em função da desigualdade da distribuição geográfica dos profissionais médicos.

Além disso, a distribuição e a proporção de especialistas e generalistas também não são lineares em todo o Brasil. Há estados e capitais onde a proporção de generalistas para especialistas é maior que na maioria do país. Inversamente, nas principais capitais a proporção de especialistas é maior que generalistas.
“Dos 371.788 médicos brasileiros em atividade, 55,1% são especialistas. Os demais 44,9% são generalistas. A razão no país é de 1,23 especialistas para cada generalista. Os números são do censo inédito realizado pelo estudo Demografia Médica no Brasil”.

O Quadro II, abaixo, mostra a distribuição das consultas segundo as necessidades de especialistas ou generalistas. O cálculo é baseado na Portaria do Ministério da Saúde, nº 1.101/2002, a qual estabelece parâmetros para a configuração das redes de saúde dos estados e municípios.

A rede pública do SUS tem como característica a atenção primária como “porta de entrada” e, por conseguinte, concentram grandes demandas nas especialidades básicas (cirurgia geral, clínica médica, pediatria, ginecologia e obstetrícia, medicina de família e comunidade), que se apresentam distribuídas em postos de saúde, prontos-socorros, serviços de pronto atendimento, plantões, ambulatórios, programas de saúde da família, consultórios.

Há, portanto, uma grande pressão sobre essas especialidades básicas pela exigência de exercerem papel curativo, preventivo e de monitoramento, o que, muitas vezes, causa o desequilíbrio entre a oferta e a demanda.

Como pode ser observado no quadro abaixo, os números mostram plena suficiência de médicos em postos públicos que atendem ao SUS, comparada com a demanda da população. Em números gerais a oferta é 30% superior em relação à demanda.

Quando avaliamos isoladamente especialistas e generalistas, constatamos que a quantidade de consultas ofertadas para especialistas é quase o dobro do que a necessidade.

Já no segmento de generalistas, a proporção praticamente fica em “um para um”, ou seja, a oferta está ajustada à necessidade/demanda.



Quadro II – Cálculo comparativo da oferta e da demanda de consultas por ano
Cálculo do número de consultas por habitante, por ano
Parâmetros Portaria MS nº 1.101/2002 *
Necessidade anual
Proporção de "consultas disponíveis" para "consultas necessárias"
Número de necessidade de consultas, por habitante, por ano
2,5
   360.245.040
                                 1,30
Consultas básicas
63%
   226.954.375
                                            1,07
Consultas especializadas
22%
     79.253.909
                                            1,97
Consultas básicas urgência
12%
     43.229.405
somadas às básicas
Consultas urg. pré-hosp/trauma
3%
     10.807.351
somadas às especialidades

População SUS dependente **

               144.098.016


* Portaria 1.101/2002/MS estima entre 2 a 3 consultas por habitante, por ano. Para este comparativo foi considerado 2,5 consultas/hab./ano.
** Demografia Médica no Brasil/Cremesp, 2011

Considerando que esta análise tem caráter global em relação ao Brasil, é óbvio que existe certa assimetria na distribuição da oferta de médicos, ocorrendo, assim o fenômeno da “escassez” para os lugares aonde os médicos não vão ou não ficam. São eles os municípios distantes das capitais ou, nos grandes centros, em locais de grande violência urbana ou locais que, pela distância ou logística de deslocamento, dificultam a conciliação com outros compromissos profissionais.

A divisão entre especialistas e generalistas apresenta contrastes maiores quando se observa as unidades da federação. Em 12 delas há mais generalistas que especialistas. Não por coincidência, vários desses estados estão entre aqueles com menor razão médico por 1.000 habitantes. O Maranhão ocupa o último lugar nas duas listas, com 0,68 médicos por 1.000 habitantes e apenas 36,6% de especialistas entre eles.
De um modo geral, os moradores de regiões mais pobres têm não só o menor número de médicos à disposição, como também o menor número de especialistas entre eles.
Fonte: Demografia Médica no Brasil / São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo: Conselho Federal de Medicina, 2011.

Ainda segundo a mesma fonte, a projeção da OMS mostra que o Brasil não terá escassez de médicos: “Um estudo de previsão populacional realizado para a OMS projetou a provável escassez de médicos no mundo para o ano de 2015. Os pesquisadores concluem que 45 países terão escassez de médicos, a grande maioria deles localizada no continente africano. Neste cenário projetado, o Brasil aparece na mesma situação dos EUA, Canadá e outros países das Américas e Europa que não terão, em 2015, um cenário de escassez ou de número insuficiente de médicos”.

Afinal, falta ou não falta médico? Qual a percepção da população?

A falta de médicos é o principal problema do Sistema Único de Saúde (SUS), mostra estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) divulgada em 09/02/2011 sobre a percepção da população sobre serviços de saúde. O instituto ouviu 2.773 pessoas de todas as regiões do país.

De acordo com o Ipea, 57,9% dos entrevistados que usaram ou acompanharam familiares para atendimento no sistema público de saúde nos 12 meses anteriores à pesquisa apontaram a falta de médicos como o problema mais grave do SUS. Dentre os que não utilizaram o sistema público, a falta de médicos foi apontada como principal problema por 58,8%.

Para 35,9% das pessoas que utilizaram o SUS, a demora no atendimento é o segundo maior problema da rede pública (32,8% para os que não utilizaram o serviço), seguido da demora para conseguir uma consulta com especialista – 34,9% dos que utilizaram ou acompanharam familiares, contra 28,9% que não utilizaram o sistema público de saúde.

Mesmo com tudo aqui demonstrado, resta uma grande dúvida em relação aos serviços de atendimento médico da rede SUS. Não raramente se veem em noticiários a denúncia da precariedade desses serviços, em boa medida pela “falta de médico”. São denúncias que terminam por não serem investigadas a fundo, a menos que tenham causado erro irreparável ou por terem assumido ação investigativa por parte de órgãos de defesa da cidadania.

Para não irmos longe ao tempo, em recente matéria do SBT, há uma clara demonstração de abuso de servidores públicos, médicos, que apenas registram o ponto eletrônico de presença e imediatamente deixam o local de trabalho, sem prestar o serviço devido. (http://www.sbt.com.br/jornalismo/noticias/33841/SBT-mostra-o-descaso-de-medicos-da-rede-publica-em-SP.html).

Esta matéria pode estar mostrando um caso isolado?

Acreditamos que não. Esse tipo de atitude, não raras vezes, é observado em muitos dos serviços de saúde pública deste país. Se não de forma tão escandalosa, como mostra a matéria, ocorre de forma velada, e o que é pior, na maioria dos casos com a conivência de quem deveria ou poderia coibir.

As fraudes se manifestam por diversas maneiras: pela redução do tempo de permanência na unidade de saúde, pela permanência em ”repouso médico” durante plantões noturnos, pela ausência não justificada, pela ausência justificada por atestado médico emitido pelo próprio colega de trabalho, pela baixa produtividade ou pelo mau atendimento.

Essas formas de fraudar o serviço público e a sociedade são exemplos constatados na realidade, colhidas no dia-a-dia em experiências de trabalho pelas diversas regiões do país, sudeste, centro-oeste, norte e nordeste.

Quando o dirigente ou gestor de saúde dispõe de alguma autonomia e também de ferramentas adequadas, há chance de mudar esse quadro. Em geral, essas ferramentas estão vinculadas à meritocracia, ou seja, um conjunto de fatores que são pactuados entre a direção da unidade e os profissionais médicos como produtividade, cumprimento de carga horária, índice de resolubilidade e que, se cumpridos, traduzem-se em remuneração adicional ou em outros benefícios.

Esses “outros benefícios” podem vir na forma de flexibilização da jornada de trabalho (desde que não em prejuízo da população), mas de maneira organizada, com quadros de plantões cobrindo as ausências, etc. Também é possível e justo, que as horas dedicadas às atividades suplementares sejam computadas às horas da jornada de trabalho como, por exemplo, a participação em comissões técnicas (ética, prontuário, óbito, etc.), as horas em preceptoria e outras.

Entendemos que nessa ferida tem que ser mexida. O fato é que há abusos e que a maioria das autoridades que deveriam ou poderiam mudar essa situação preferem não alterar o status quo e deixar o tempo passar. O tempo é agora!


Referências:
Brasil, Ministério da Saúde – Portaria n.º 1101/GM, de 12 de junho de 2002.
Brasil, Ipea - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Pesquisa sobre a percepção da população sobre os serviços do SUS.
Demografia Médica no Brasil / coordenação, Mário Scheffer; equipe de pesquisa: Aureliano Biancarelli, Alex Cassenote. – São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo: Conselho Federal de Medicina, 2011.
­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­Outras publicações do autor:
http://www.artigonal.com/authors/799002